segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Meu professor de piano


Ola meus queridos(as)

Todos nós precisamos de novos projetos para nos reciclarmos, nos sentirmos vivos... Hoje, acordei determinada a volta a tocar piano! Faz séculos que não chego perto de um piano, o meu de calda (que ganhei num concurso décadas atrás esta empoeirando na casa da minha mãe; será difícil vendê-lo, vai partir meu coração MAS não tem como colocar um piano de calda aqui no nosso (aper)tamento, só se morar apenas o piano... e com o $ compro um, tão bom quanto, mais o que chamamos de piano de armário, talvez caiba).

Nunca fui uma pessoa muito artística, digamos que minha criatividade sempre foi limitada pela minha racionalidade, minhas piores notas no colégio sempre foram nas aulas de arte e educação física, é sério. Mas piano.... piano foi minha paixão por muitos anos, piano é dedicação, repetição, as partituras como equações, aonde as notas são variáveis, que gradualmente se unem numa melodia, contando uma estória.

Comecei como toda criança, lá pelos meus 8 anos com uma professora de bairro; lembro dela com carinho, seu sobrado cheirando a bolo de laranja (sempre tinha um bolinho para os alunos), as partituras amareladas espalhadas pela sala, o piano antigo, imponente ocupando seu lugar de destaque... e assim apreendi as notas musicais, a "ler" as partituras, as primeiras músicas, o romantismo dos prelúdios de Chopin, a erudição de Bach, a genialidade de Mozart, a chatice de Schubert (até hoje, não tem jeito, não gosto das suas composições), a intensidade de Rachmaninoff e seus concertos, a delicadeza de Debussy...  Minha mãe, percebeu meu genuíno interesse, e alugou um piano; e assim começaram horas e horas de prática diária. Quando eu estava de saco cheio, ia para o piano, quando estava contente, ia para o piano, quando estava com raiva, ia para o piano... ele era meu confidente, meu amigo, minha companhia de todos os momentos. E fui crescendo ao seu lado, as peças cada vez mais elaboradas e tecnicamente mais difíceis, até finalmente chegar na Marcha Turca de Mozart (é quase como escalar o Everest para uma pseudo pianista amadora como eu era)! Todo final de ano, a fofa da professora alugava um salão para o recital de final de ano dos alunos, todo mundo tocava alguma coisa, qualquer coisa (desde dos que não tocavam nada até os mais avançados); e aquele ano fui escolhida para fechar as apresentações com meus prelúdios de Chopin. E assim começou uma nova fase na minha vida, a professora fofa chamada Maria Lúcia me deu o telefone de um outro professor de piano, e disse que ela não tinha mais muito a me ensinar... E com lágrimas nos olhos me despedi dos seus bolos de laranja, e entrei no universo melancólico, dramático e esfumaçado do pianista aposentado A.

A. era velho, solteirão, dedos amarelos (era capaz de fumar 10 cigarros em menos de uma hora), um olhar triste mas INTENSO, tinha sido aluno da mais famosa pianista brasileira na época, Magda Tagliaferro, foi concertista, morou em Paris... E morava num apartamento entulhado de coisas velhas, as poltronas eram de um veludo desbotado, as paredes cobertas de posters antigos de recitais, um tapete que nunca viu a luz do sol, um cheiro de cigarro impregnante, e ocupando toda a sala, seu majestoso piano de calda Steinway! Tínhamos aula três vezes por semana, cada vez que entrava naquele elevador de manivela do seu prédio na Praça Rosevelt parecia que estava entrando numa cápsula do tempo. Ele era extremamente exigente, quando cheguei para uma aula com a mão enfaixada (pois tinha deslocado meu dedo jogando basquete) achei que ele iria me matar, foi categórico, largue o basquete ou o piano. Disse, teremos um concurso para pianistas amadores na biblioteca municipal, o prêmio, um piano de calda novíssimo Steinway e uma bolsa de estudos para ser aluna no conservatório brasileiro de música, já inscrevi você, temos três meses para preparar a peça, será Bach. Ah... para tudo!

Eu tinha 16/17 anos, estava me preparando para o vestibular, não conseguia mais passar 6 horas em cima de um piano, e muito menos me via uma concertista profissional (eu queria ser oceanógrafa)! Acho que ele projetava em mim o sucesso que ele teve no passado, e se alimentava disso; como se eu fosse algum aluno prodígio. Mas abracei o concurso com todo meu coração, foram inúmeras, infindáveis madrugadas praticando, praticando e praticando até meus dedos sangrarem. E durante meses eu apresentava a peça ao A. e ele com seu olhar enigmático repetia, falta alma, falta alma... técnica só não basta.

Chegou o dia da apresentação, entrei na biblioteca municipal tremendo, vestindo minha calça jeans e meu tesouro em baixo do braço, minha partitura Toca e Fuga em Ré menor de Bach que me acompanhou por meses (só por segurança, pois sabia de cor e salteado a peça). Ele me aguardava com duas caixas; são para você, se vista (porque, estou pelada por acaso?) e arrume esse cabelo; estarei na primeira fileira da platéia, boa sorte e não fique nervosa senão as mãos vão suar e escorregar no teclado. E assim ele foi, enquanto eu abria a primeira caixa e um sapato lindo de salto alto estava lá dentro, a segunda um vestido preto clássico, de magas longas, comprido de seda, com um decote bem sexy (para época) nas costas... Fiquei pasma!

Quando chamaram meu nome, subi naquele palco vestida como uma concertista, agradeci a platéia, tentei não olhar em direção nenhuma, sentei naquele piano lindíssimo e simplesmente toquei, quase em transe, mal escutei os aplausos quando enlouquecida, terminei de tocar a última nota. Levantei, e lá estava ele, em pé, aos prantos... Bravo, bravíssimo. E todo o auditório.

Ganhei, ganhamos; e no dia seguinte lá estava meu piano sendo entregue em casa! Toquei nele o dia inteiro, sem parar. Passei no vestibular, decidi ir para a federal no Rio Grande do Sul estudar oceanografia, e chegou o momento de dizer a ele que não aceitaria a bolsa no conservatório, e estaria me mudando para o sul...

Foi a última vez que o vi, não sei se quebrei seu coração, mas uns meses depois minha mãe me avisou que ele tinha infartado e morrido. Fiquei anos sem encostar num piano, mas chegou a hora de voltar a tocar, talvez, até para que ele me escute tocando novamente, sentado na sua poltrona surrada, com  seus olhos fechados, sendo transportando para outro universo enquanto a cinza do cigarro cai no tapete... meu professor, que me ensinou a ter alma!





3 comentários:

  1. Parabéns pelo talento. ... lindo post... Já falei com você que sua vida dá um belíssimo livro. .. mesmo com todos os problemas que a codependencia nos causa. ... sua vida é da um belo livro de romance (adoro romances). Desses com final feliz é claro!! Bjs

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    1. Oi minha querida, mais uma vez obrigada pelo carinho... não sei se minha vida daria um belo romance, MAS certamente todas as vidas têm sua estória e merecem ser contatas! Quanto ao final feliz, não cheguei no final ainda...kkkk... e espero demorar mais um pouquinho até chegar lá! Mega beijos

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